Um professor sem coração

Fui professor de Direito por muitos anos, e, como acontece com todo docente que passa tempo suficiente em sala de aula, acumulei histórias curiosas, engraçadas e, às vezes, um pouco dolorosas. Uma delas me acompanha até hoje e sempre me faz refletir sobre ética e humanidade.

Certa vez, tive uma aluna com mais de 70 anos. Era uma figura admirável pela coragem: começar, ou recomeçar, uma faculdade de Direito nessa idade não é para qualquer um. Mas, apesar do esforço e da simpatia dela, o fato é que ela não dominava o conteúdo mínimo necessário para ser aprovada. Passei semanas ponderando: valeria a pena reprovar? Afinal, com aquela idade, dificilmente ela iria exercer a profissão de advogada. Por outro lado, e se ela decidisse fazê-lo e colocasse em risco um cliente por falta de preparo? A responsabilidade seria minha também.

Com o coração apertado, optei por reprová-la. Não foi fácil: eu sabia o quanto aquilo significava para ela, mas minha consciência me dizia que aprovar por pena seria injusto com os outros alunos, com a profissão e até com ela mesma.

Os anos passaram. Um dia, folheando o jornal da cidade, me deparei com uma matéria em destaque: “Idosa realiza sonho e se forma em Direito”. Sorri ao imaginar quem poderia ser, e, ao ler a reportagem, meu sorriso virou surpresa, e um pequeno aperto no peito: era ela.

Lendo a entrevista, senti um calor misto de alegria e desconforto. Quando a repórter perguntou se havia tido alguma decepção durante o curso, ela respondeu: “Foi tudo tranquilo, exceto por um professor sem coração que me reprovou”. Naquele instante, eu me reconheci na figura do vilão da história dela.

Confesso que fiquei triste por permanecer na memória desta pessoa como alguém que a prejudicou. Mas, ao mesmo tempo, senti uma felicidade profunda. Ela não só superou a reprovação como persistiu até conquistar o diploma. Percebi que, talvez, minha dureza momentânea tenha reforçado sua determinação.

No fim das contas, acho que ambos vencemos: ela, por realizar um sonho com perseverança; eu, por ter seguido a consciência, ainda que isso me custasse um lugar ingrato na lembrança dela. Às vezes, ser “o professor sem coração” é, paradoxalmente, um ato de cuidado e respeito.

Autor: Marco Antonio Calábria

15/10/2025

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